terça-feira, 17 de maio de 2016

REGISTRO DO ESPETÁCULO PÓLO MARGINAL OPERETA DE RUA
GRUPO TEATRO DE RUA LOUCOS E OPRIMIDOS DA MACIEL

Uma Nau poética de possíveis corpos palavras

O trabalho encontrava-se em circulação pela Região Metropolitana do Recife, é uma montagem do Grupo de Teatro de Rua Loucos e Oprimidos da Maciel, grupo que surgiu em 2007 como iniciativa de diversos artistas que freqüentavam a Pça. Maciel Pinheiro, no centro do recife e tem na figura do ator e diretor Carlos Salles (já falecido) seu principal líder.

Final de tarde na histórica Olinda - Praça do Carmo; a roda já se encontrava formada, e mesmo que a narrativa do espetáculo ainda não houvesse começado sua espetacularidade já se iniciava nos apresentando de cara uma das singularedades do Teatro de Rua, ele desnuda, dissolvendo coxias, camarim, banheiro, corredores, em fim ele escancara o inicio da ação cênica para o público.
Com esse cenário me deparei, atores maquiando-se, se vestido, conversando, encontrando-se com o momento. O que se seguiu então foi o espetáculo acontecendo antes do espetáculo, esse é um caminho importante para a montagem, pois constrói de antemão uma relação de cumplicidade com a roda. Nesse sentido, é importante apontar que nem todos os atores se entregam da mesma forma a esse momento inicial do espetáculo, que remete a própria estética dos artistas de rua quando vão estabelecer suas rodas. Uma herança trazida de muitos séculos, gestada nos artistas de feira como cita Robson Camargo Correia no artigo A pantomima e o teatro de feira na formação do espetáculo teatral: o texto espetacular e o palimpsesto. “Este tipo de espetáculo originado nas feiras, dentro do espírito comercial do deixa fazer, deixa passar, não buscava uma forma pura, ao contrário, propunha a mistura de gêneros ou um gênero das misturas, de épocas, de tons, com audácia de linguagem, transgressão calculada, utilizando a irreverência cotidiana (...).”
Nessa espécie de preparação da roda, alguns atores falaram sobre política, cultura, cachaça, praça, vendedores, uma variada relação de trocas com o público, ou seja, já era o espetáculo acontecendo, antes de começar, será isso possível? Antes de iniciar a apresentação o ator e assistente de direção Rodrigo Torres, mais uma vez trás uma marca da estética dos artistas de rua, ele também demarca a roda derramando cachaça. Muitos rueiros de grandes centros urbanos, que cotidianamente estão nos espaços públicos para o desempenho de suas praças e rodadas de chapéu, utilizam desse código para definir sua roda, utilizando muitas vezes água, querosene, fogo, corda, etc. No Pólo Marginal a cachaça é bem representativa da história de vida do poeta que inspira o espetáculo, em sua vida boemia pelas ruas do Recife.
Pólo Marginal apresenta duas contextualizações, antes e depois do quadro Mete Bronca. Cena do espetáculo que ocorre aproximadamente no meio e onde o público é convidado a participar, falando, discursando, recitando, cantando. Momento do público falar o que pensa e senti.
Pois bem, o espetáculo antes desse quadro metamorfoseia a imagem de uma nau de piratas em viagem, se materializam na cena, com as músicas e poesias, a areia, o vento, o mar, a viagem, liberdade e o caminho. O que estariam esses piratas a procurar? O que querem conquistar? Em um dos momentos eles entoam “era o barba negra com a sua turma e suas canções” letra da banda pernambucana Ave Sangria, que inspira a dramaturgia. Ou seja, uma turma de seres marítimos em um barco poético, caminhando, viajando, cantando, dançando, fugindo quem sabe? O coro que os atores formam, com corpos e vozes tenta trazer essas atmosferas para a narrativa, misturando um pouco do universo da oralidade dos contadores de histórias, pois são os piratas assim como os pescadores exímios contadores de histórias?
O cenário do espetáculo compõe-se de banquinhos em madeira que ajudam a circunscrever a roda, ao fundo os dois músicos Celso José e Walgrene Agra e os figurinos que serão trocados no decorrer da cena. O que chama a atenção é ao centro o uso de um pequeno praticável meio arredondado em forma de escada, esse é um dos elementos do cenário mais representativo, desta nau de piratas, pois os atores se revessam na utilizam deste, onde o ator em destaque costuma utiliza-lo para o plano mais alto, e aí reside essa conexão com uma nau, aos meus sentidos este material de cena seria a popa, local onde se guia o leme da embarcação, lugar de vislumbrar o mar mais do alto.


Na dramaturgia o poeta é um pirata, ele busca, cria, rouba, descobre, enterra para depois descobrir de novo. A opereta de rua compõe a imagem desse poeta pirata, marginal e solitário em sua paradoxal viagem em bando. Nesse sentido, se instaura para o grupo um desafio, como experimentar a poesia de Marco Polo no corpo dos atores, já que a montagem exige que eles ultrapassem a palavra dita e escrita para criar outras palavras, criar talvez um corpo-palavra, alguns atores conseguem ancorar nesse porto de descobertas. Contudo, percebe-se que quando essa viagem a outras corporeidades não acontece, se estabelece uma linearidade na atuação, que pode gerar certo cansaço ao vermos algumas poesias sendo vividas corporalmente e poeticamente sempre com a mesma forma. Mesmo existindo uma tentativa de desorganizar isso, com as marcações e coreografias, contudo ainda pode ser insuficiente.
Um dos exemplos mais importantes na encenação que trazem esse corpo-palavra em ação é a cena entre os três piratas, que parecem estão em luta, talvez mais que luta, são corpos que estão em jogo; onde a métrica, os versos, as palavras, não adormecem somente no dito, mas acordam e gritam no corpo dos três piratas. E isso coincide inclusive com o fragmento final da cena: “- O corpo é a caligrafia da morte”. É na morte que esse corpo se inscreve, é na morte que o corpo se rebusca, é na morte que o pirata poeta surgi, mais vivo que nunca.
No decorrer dessa morte, algumas maquiagens vão derretendo nos rostos dos atores, gerando outras máscaras, diferentes imagens imperfeitas da imagem inicial; Começam a aparecer sujeitos marcados, fantasmas de si mesmos. É importante esse deixar desmanchar, manchar, a viagem de um pirata é uma trajetória de descoberta.
Contudo toda viagem um dia chega, talvez não a um destino final, mas em algum lugar. A segunda parte do espetáculo é a chegada desse poeta pirata, o barco ancora, encontrando rastros; esses sujeitos desterrados descobrem um mundo de mendigos, rios de merda, precisões de igreja, crucificados, julgados e julgadores, luxo, riqueza, pobreza, sexo e expansão. Então, é melhor não acordar Lazáro! Essa mudança é marcada além da dramaturgia, pela mudança de figurinos, os piratas agora sem camisas, com longos saiões, colares e lenços na cabeça. Nas cenas anteriores usavam sobretudos, casacos e bermudões.
Marco Polo adentra nas vísceras da cidade, olha poeticamente todas suas sutilezas, mais ainda é o mar, areia e a praia seu último refugio. É assim que o poeta percebe ser um marginal, pois nem é mais nau que o leva indefinidamente a lugares, dentro dele mesmo, nem é cidade que lhe habita como fantasmas, atração, sentidos e cheiros. Talvez ele seja os dois...
A opereta se traduz nas músicas, sons, dança, é uma opereta construída em um universo estético próprio do grupo, uma opereta dos marginais, poetas, bêbados, cantadores, mulheres e homens em viagem, como não ser diferente sendo está uma opereta de rua, preenchendo- se de alguns sentidos da rua. Os músicos, magistralmente auxiliam os atores na tarefa de fazer ecoar essa nau e esse bando, nessa busca de chegar e sair de diferentes portos, de diferentes rodas.





RAQUEL FRANCO


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